ANÁLISE DO PERSONAGEM EUGÊNIO, DA OBRA O SEMINARISTA, DE BERNARDO GUIMARÃES

ANÁLISE DO PERSONAGEM EUGÊNIO, DA OBRA O SEMINARISTA, DE BERNARDO GUIMARÃES
                                                                   Doralice Martins Blos - EM 231

            O romance O Seminarista, de Bernardo Guimarães, faz jus ao verdadeiro significado de protesto. Publicado em 1872, a obra denunciava a hipocrisia das instituições religiosas, sem incomodar-se com as consequências que traria consigo em uma sociedade patriarcal e com pensamentos obsoletos. O autor utiliza-se de uma riqueza de detalhes admirável, capaz de tocar até a alma mais austera e provocar reflexões sobre a sociedade da época. Guimarães expõe, principalmente, a trajetória e o destino de Eugênio, menino ingênuo e de bom coração, mostrando detalhadamente seus pensamentos e transformações ao decorrer da obra.
Morador vizinho da Vila de Tamanduá, Eugênio, que “[...] era alvo, de cabelos castanhos, de olhar meigo e plácido e em sua fisionomia como em todo o seu ser transluziam indícios de uma índole pacata, doce e branda” (GUIMARÃES, 2005, p. 21), passava as tardes à sombra de paineiras, junto com sua companheira de travessuras, Margarida. A moça “[...] era morena, de olhos grandes, negros e cheios de vivacidade, de corpo esbelto e flexível como o pendão da imbaúba” (GUIMARÃES, 2005, p. 21), e as paineiras, que possuíam os galhos entrelaçados, eram similares ao relacionamento dos dois, que a cada dia parecia mais estreito.
            O menino era filho de um capitão dono de consideráveis posses, e que sonhava em ver Eugênio em trajes eclesiásticos. Os pais viam no rapaz uma forte vocação para o sacerdote, em vista de sua personalidade serena, como confirma Bernardo Guimarães:

Eugênio era dotado de índole calma e pacata, e revelava ainda na infância juízo e sisudez superior à sua idade; tinha Inteligência fácil e boa memória. Além disso mostrava grande pendor para as coisas religiosas. Seu principal entretimento, depois de Margarida, cuja companhia preferia a tudo, era um pequeno oratório, que zelava com extremo cuidado e trazia sempre enfeitado de flores, pequenas quinquilharias e ouropéis (GUIMARÃES, 2005, p. 37).

            Por muita obstinação de seus progenitores, Eugênio integrou-se ao seminário de Congonhas do Campo. Mantinha segura sua personalidade bonançosa, mesmo passando por dificuldades na aprendizagem, conforme expõe Guimarães:

No seminário o menino Eugênio era um exemplo de boa conduta e aplicação. Cordato, dócil e obediente, depressa granjeou a benevolência e estima dos padres, e a simpatia de seus companheiros. No estudo, porém, não deu a princípio muito boas contas de si, nem apresentou os progressos que eram de se esperar de sua boa memória e inteligência (GUIMARÃES, 2005, p. 47).

            O jovem sentia muito pesar ao lembrar de sua família e de sua terra natal, mas o que mais o afligia era a saudade de Margarida, substituída pelos estudos e devoções que o seminário exigia. Eugênio supria a falta da menina por meio de versos que evidenciavam sua ingenuidade e delicadeza. Mas, lamentavelmente, nem todos viam essas virtudes em seus poemas. O diretor da instituição considerava sua demonstração de afeto “[...] um pecado abominável, uma revoltante hipocrisia” (GUIMARÃES, 2005, p. 55), e ordenou que o menino se aprofundasse nos estudos e devoções.
            Deveras, Eugênio esforçava-se excessivamente para esquecer Margarida, mas sua luta era em vão. Sua única conquista foi um corpo e uma alma frágeis como flores no inverno. Talvez estivesse sentindo-se como as flores nessa estação. Indefeso. De acordo com Bernardo Guimarães,

[...] Eugênio estava magro, pálido, alquebrado, que mais parecia uma múmia ambulante. Tinha-se de todo amortecido o brilho de seus grandes olhos azuis, e profunda palidez cobria-lhe o rosto magro. O adolescente de dezesseis anos parecia um ancião às bordas da sepultura (GUIMARÃES, 2005, p. 63).

            Depois de muito pedir aos padres, o jovem teve o consentimento destes para visitar sua família. Ao rever as bucólicas paisagens de sua terra e relembrar seus momentos de diversão com Margarida, seu intelecto e fisionomia restabeleceram-se instantaneamente. Sua relação com a moça tardou a recompor-se, mas depois de um tempo, já estavam a fazer juramentos. A viagem provocou intensas transformações no menino, inclusive o desejo de deixar o seminário. Ao comunicar sua mãe dessa intenção, essa o repreendeu, acreditando ser Margarida a culpada por suas mudanças, e o proibindo de vê-la com muita constância.
            Porém, foi ao revelar ao pai que a vocação sacerdotal havia findado de seu coração, que Eugênio teve de partir de volta ao seminário. Ao despedir-se de Margarida, uma angústia tomou conta de sua alma. A última conversa foi sussurrada “[...] com voz trêmula e abafada entre lágrimas, e ninguém poderia adivinhar que fundas tristezas, que ansiosas e cruéis inquietações se exalavam naqueles tímidos e sentidos arrulhos [...]” (GUIMARÃES, 2005, p. 109).
            Ao voltar à Congonhas do Campo, contrariado, Eugênio deixou a melancolia apossar-se de seu corpo. E coração. Nem insistia em tirar Margarida de seus pensamentos, pois sabia que a tentativa seria inútil. Segundo Guimarães,

A saudade, que o devorava, já não era essa tristeza lânguida e melancólica, que se entorna do coração com certa suavidade como o perfume de uma flor mirrada, e se espairece nos ares nas asas do devaneio como uma nuvem dourada pelos fulgores da aurora. Era o negrume carregado de uma noite pesada, muda e funérea; de uma noite toldada, sem luz de estrelas nem lampejos de harmonia, nem fragores de tempestade (GUIMARÃES, 2005, p. 114).

            Os padres da instituição, percebendo que seus esforços em trazer de volta o antigo Eugênio eram ineficazes, resolveram sugerir ao pai do menino que casasse Margarida.
            O tempo foi o melhor amigo de Eugênio. Não o ajudou a esquecer Margarida, mas fez uma tranquilidade pousar em sua alma. O menino, depois de muitos esforços, conseguiu dividir seu coração para que dois amores se acomodassem: o amor por Margarida e pelo sacerdócio, como constata Bernardo Guimarães:

Essas duas tendências naturais de seu coração terno e entusiasta, pode-se dizer essas duas paixões, que lhe eram inatas, o amor e a devoção, consagravam-se admiravelmente em seu espírito. O arroubo místico, contínua aspiração para Deus e para as coisas celestes, não excluíam nele o amor por essa criatura, que é sobre a terra um dos mais belos reflexos do infinito poder – a mulher (GUIMARÃES, 2005, p. 125).           

A vontade de exercer o sacerdócio oscilava em sua mente. Mas, por conta das confissões que tinha com o diretor, sua vocação tornava-se cada vez mais consistente. Em uma dessas conversas, deram-lhe a notícia mais temerosa que um apaixonado pode receber: Margarida, seu amor, casara-se!  Em conformidade com Guimarães,

[...] O pobre moço pensava morrer de despeito, de vergonha e desesperação. Estranho e deplorável egoísmo do amor! Eugênio teria sofrido menos, se soubesse que Margarida, fiel a seu amor, houvera sucumbido vítima da mágoa e da saudade (GUIMARÃES, 2005, p. 140).

Eugênio, a muito custo, tornou-se padre. O sentimento de rejeição enfrentado por ele foi o que tornou possível essa conquista. O padre voltou à terra natal e percebia-se mudanças em sua fisionomia. Em seu rosto testemunhava-se “[...] como a sombra de um sofrimento íntimo, e uma ligeira nuvem melancólica toldava um pouco a limpidez de seus grandes olhos azuis” (GUIMARÃES, 2005, p. 149).
O destino fez o “menino”, que agora vestia túnica e estola, e Margarida, encontrarem-se novamente. A menina estava tomada por uma enfermidade e mal-estar característicos de um óbito subsequente, e o padre, ao vê-la naquele estado e lembrando de sua “traição”, retirar-se-ia do recinto, não fosse sua paciência para esclarecer os equívocos que os afastaram, como o falso casamento da menina. O tempo tornou-se inimigo dos dois e suas juras já não eram o bastante.
Talvez Eugênio estivesse atrasado. Ou talvez a culpa fosse de Margarida. É precipitado arriscar um palpite. Mas o certo é que o destino foi obstinado ao determinar a morte repentina da menina. De acordo com Guimarães, Eugênio parecia pressentir o acontecimento:

O padre ficou transido de horror. Afeito a esse triste espetáculo, Eugênio não era medroso; mas desta vez, sem saber por que, sentia um pavor irresistível. Um suor gelado inundava-lhe a testa, e as artérias lhe tintilavam nas fontes da dolorosa vibração [...] (GUIMARÃES, 2005, p. 170).

Após ter certeza de que sua amada havia falecido e de que só lhe restava a terra, o padre ficou inconsolável e sentimentos de cólera e asco o dominaram e acenderam-se em seu espírito, como confirma Bernardo Guimarães:

Chegando à escada que sobe para o altar-mor o padre parou, e quando já todos de joelhos esperavam que rezasse o “intróito”, viram-no com assombro arrancar do corpo um por um todos os paramentos sacerdotais, arrojá-los com fúria aos pés do altar, e com os olhos desvairados, os cabelos hirtos, os passos cambaleantes, atravessar a multidão pasmada, e sair correndo pela porta principal! (GUIMARÃES, 2005, p. 172).

Tendo em vista o exposto, pode-se afirmar que a obra O Seminarista exerceu grande importância sobre a sociedade do século XIX. E continua exercendo. Não só de dificultosas palavras se faz o romance, como também de um forte comprometimento em expor ao leitor as concepções de um mundo muito influenciado por princípios “sagrados”. Um mundo que prefere contemplar seus filhos em trajes eclesiásticos a vê-los verdadeiramente realizados. Um mundo que só estima vocações impostas por ele mesmo. Um mundo que interfere no amor de duas pessoas, em razão de convicções primitivas. Um mundo não muito distante. A morte de Margarida é um reflexo das imposições desse mundo. E a transfiguração de Eugênio é uma resposta a ele. A sociedade não matou somente a menina, como também a alma e o intelecto do rapaz. Eugênio estava morto e não sabia.


Referências:

GUIMARÃES, Bernardo. O Seminarista. São Paulo: Martin Claret, 2005.

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